sábado, 25 de setembro de 2010

O art. 146 do RI do STF

"Havendo, por ausência ou falta de um Ministro, nos termos do art. 13, IX, empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, considerar-se-á julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta".

domingo, 29 de agosto de 2010

Além da Ficha Limpa

Márlon Jacinto Reis - O Estado de S.Paulo
A Lei Complementar n.º 135/2010, conhecida como a Lei da Ficha Limpa, já impacta as eleições brasileiras com uma série de postulados inovadores, cujas premissas são facilmente percebidas por todos os níveis da sociedade, menos por uma minoria que ainda não compreendeu o momento.
Interpretar o Direito Eleitoral segundo princípios do Direito Penal constitui erro primário. Logo o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmará os seus precedentes e reafirmará que inelegibilidade simplesmente não é pena (MS n.º 22.087-2). Trata-se de critério jurídico-político instituído para orientar o responsável pelo registro da candidatura segundo presunções explicitamente autorizadas pelo parágrafo 9.º do artigo 14 da Constituição da República.
Nenhuma inelegibilidade se baseia na existência de culpa. Ao cônjuge de mandatário, ao analfabeto e ao que não se desincompatibilizou tempestivamente não se atribui o cometimento de nenhum ilícito. Mas são inelegíveis porque as normas consideram tais candidaturas inconvenientes. O mesmo ocorre agora com os condenados por tribunais: é irrelevante indagar se são ou não culpados, sendo suficiente para a incidência do critério a presença desse dado objetivo que é o acórdão condenatório.
Critério não retroage, aplica-se a partir de certo momento. Nas eleições de 2010 vigorarão os novos critérios desenhados pela Lei da Ficha Limpa. Serão, sim, alcançados fatos pretéritos, não para a aplicação de uma pena, mas para a verificação da incidência de um critério. Nada disso é surpreendente para os conhecedores do Direito Eleitoral.
Trata-se, na verdade, de uma noção jurídica elementar. Todas as democracias consolidadas conhecem limitações a candidaturas. Em algumas as restrições são duríssimas, como ocorre com os felons nos Estados Unidos. O cientista político David Fleischer, comentando o que ocorre nos Estados Unidos, disse certa vez que, "se um candidato for condenado em primeira instância, os partidos vão tratar como se fosse uma lepra, uma praga". Na Espanha, pessoas que praticaram crimes de terrorismo ficam inelegíveis já após a sentença de primeiro grau. Muitos outros exemplos poderiam ser citados.
O certo é que nenhuma democracia sobrevive à intrusão do crime organizado na seara política. Nas eleições majoritárias isso ocorre de forma mais rara. Mas em nosso sistema eleitoral personalista - em que os partidos políticos exercem papel de meros coadjuvantes - as eleições proporcionais se converteram em porta fácil para a conquista do poder político, com todas as suas salvaguardas, dentre as quais o injustificável foro privilegiado.
Embora os realmente envolvidos em práticas delituosas - tais como desvio sistêmico de verbas públicas, narcotráfico, lavagem de dinheiro - sejam minoria, exercem grande influência nas Casas Legislativas, onde atuam como fiéis da balança na disputa hegemônica entre maioria e minoria.
Vendendo cara a sua adesão, seu número basta para influir sobre o Orçamento e sobre sua execução de modo a comprometer a higidez das contas públicas e do planejamento, contribuindo para a inviabilização do trâmite de projetos de lei estratégicos, como os relativos às reformas eleitoral e tributária. É o que se chama de "captura de governo", fenômeno que seguirá comprometendo a gestão pública enquanto não for contornado de modo satisfatório. Essa captura, sim, é profundamente antidemocrática e inconstitucional. Não é a esse desajuste que dá suporte a nossa Constituição, inspirada, inversamente, por noções como publicidade, impessoalidade, economicidade, moralidade e probidade administrativas.
Foi essa a leitura que embalou a Campanha Ficha Limpa. Ela está viva entre as dezenas de organizações que integram o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Além disso, representa o ideário de uma teia social complexa e inovadora que permeia novos movimentos sociais comprometidos com um modelo de País, sem dívidas com nenhuma ala ou partido.
Mas não tenho dúvida de que muitos outros segmentos, dentre os quais trabalhadores, profissionais liberais e empresários dos setores que embalam a nova economia brasileira, têm interesse na consolidação desse entendimento. Isso se aplica indistintamente a todos os interessados na aplicação de modelos de governança baseados na representação efetiva dos diversos estratos sociais, no planejamento estratégico das políticas públicas, no desenvolvimento pautado pela sustentabilidade e na estrita observância a parâmetros de responsabilidade e transparência.


A Ficha Limpa é um passo importante nessa direção, convidando à sedimentação de uma representatividade política mais compatível com as aspirações internas e externas de um país que evolui tão acertadamente em outros campos. Apenas um Parlamento formado por uma representação adequada poderá constituir a grande mesa de diálogo em torno da qual se consolidarão as ideias de democracia e República de que depende o nosso futuro.

Essa conquista é, portanto, daquelas que reclamam continuidade. Ela demanda a permanência da mobilização até o completo desfazimento do ciclo que atravanca nossa institucionalidade política, o qual só será mais diretamente enfrentado quando o Congresso Nacional, finalmente, se convencer do caráter inadiável da reforma do vigente sistema eleitoral.

Que venha, então, a nova iniciativa popular de projeto de lei. Desde que a sociedade civil possa alcançar consensos rumo à construção de um projeto sólido, poderá defrontar-se com as principais mazelas que reduzem a qualidade da nossa representação: a debilidade dos partidos, o clientelismo e a mercantilização das campanhas eleitorais.


JUIZ DE DIREITO NO MARANHÃO, É PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS MAGISTRADOS, PROCURADORES E PROMOTORES ELEITORAIS

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ficha limpa na gaveta, suja nas eleições

TOMÁS BALDUINO

Folha de Sao Paulo
TENDÊNCIAS/DEBATES

--------------------------------------------------------------------------------
A gente se pergunta: a quem, afinal, esse Congresso representa? Qual a relação que esses nobres deputados têm com a sociedade civil?
--------------------------------------------------------------------------------


UM MILHÃO e quinhentas mil assinaturas entregues a Michel Temer (PMDB-SP), presidente da Câmara dos Deputados, em 29 de setembro de 2009, foram o fruto de uma bela e esperançosa campanha nacional visando apresentar um projeto de lei exigindo ficha limpa dos candidatos a cargos eleitorais.
Um evento histórico da maior importância para a democracia brasileira.
Houve destacada participação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), da presidência da CNBB, dom Geraldo Lyrio e dom Dimas Barbosa, insistindo, na coletiva do dia 11 de dezembro, na agilidade na aprovação do projeto para barrar a corrupção na política.
A magnitude do acontecido mereceria uma comemoração das mais festivas. O que se viu, entretanto, depois da entrega oficial, foi um Congresso silencioso, reticente, triste...
O deputado Michel Temer, desde o primeiro momento, se entrincheirou no adiamento da pauta do projeto para fevereiro de 2010, alegando agenda cheia, recesso parlamentar e outras prioridades. Dizia estar dialogando com os líderes para que esse projeto de lei não corresse o risco de "não ser aprovado".
Passado um mês de sua entrega, não havia relator designado e entrou no inexorável ritmo do passo lento daquela pesada máquina burocrática. Uma decepção! A ficha limpa foi para a gaveta de Michel Temer.
Quanto aos demais deputados, não se tem registro de posicionamento público, a não ser o do deputado José Genoino (PT-SP), que subiu à tribuna, em 4 de novembro, para criticá-lo.
Para Genoino, a proposta é "inconstitucional" e "autoritária". É preciso recordar, porém, que ele é réu no processo do mensalão que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Seu discurso recebeu apoio de quatro deputados, entre eles o de Geraldo Pudim (PR-RJ), que já foi alvo de questionamentos na Justiça, e Ernandes Amorim (PTB-RO), que admitiu responder a processos e inquéritos judiciais.
Genoino se posiciona pela liberação das fichas sujas nas eleições, pela manutenção da impunidade dos que acorrem à campanha eleitoral em busca de um cargo público, para lhes garantir fórum especial e blindá-los contra os instrumentos comuns e normais da Justiça.
Vários políticos se precipitam em busca da eleição logo após terem cometido crimes, até de homicídio.
Conseguem multiplicar recursos financeiros e, consequentemente, o número suficiente de eleitores para elegê-los.
Agora, na semana passada, depois de quatro meses de espera na Câmara, os líderes partidários decidiram criar uma comissão para, simplesmente, modificar o texto da proposta porque, segundo eles, haveria dificuldades de aprovar o veto à candidatura de políticos com condenação em primeira instância na Justiça.
A gente se pergunta: a quem, afinal, esse Congresso representa? Qual a relação que esses nobres deputados têm com a sociedade civil organizada para que uma mobilização popular séria, prevista na Constituição, como a que ofereceu à nação um número tão expressivo de assinaturas, acabe, na Câmara, num leviano joguete de interesses escusos de senhores votando em causa própria?
Está de parabéns dom Dimas, secretário-geral da CNBB, que mais uma vez se posicionou com o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral: "Não se tolera mais adiamento do projeto. O movimento topa dialogar com quem de direito no Congresso. Não aceita, porém, alterações redacionais que venham desfigurar os princípios que norteiam a iniciativa".
A ficha limpa é um passo de suma importância para salvar a democracia e para garantir a credibilidade do processo eleitoral. Mas não é tudo, pois uma análise mais profunda do nosso processo eleitoral nos leva à melancólica conclusão de que ele é estruturalmente corrupto.
Vou citar, para concluir, uma autoridade no assunto, João Heliofar de Jesus Villar: "Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil. Quem trabalha na fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar. Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. (...) Há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma necessidade inafastável."
("Corrupção: o ovo da serpente", "Tendências/Debates", 4/1).
Antes de qualquer reforma política entregue a esses mesmos senhores, emerge, pois, a nossa inarredável responsabilidade como sociedade civil organizada.



--------------------------------------------------------------------------------
PAULO BALDUINO DE SOUSA DÉCIO , o dom Tomás Balduino, 87, mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e linguística, é bispo emérito da cidade de Goiás e conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

domingo, 31 de janeiro de 2010

Magistrado do Brasil diz que corrupção eleitoral é crime contra a Humanidade

Fonte: Pravda

O desembargador do Poder Judiciário Brasileiro, Pedro Valls Feu Rosa, vai comandar pela primeira vez as eleições no Estado do Espírito Santo. De conduta independente, criteriosa e imparcial, o novo presidente do Tribunal Regional Eleitoral é considerado um magistrado intolerante a todo tipo de pressão, arranjos ou influências, e que busca, diariamente, aprimorar seu singular saber jurídico para personificar o justo juiz na aplicação da Lei, do Direito e Justa Justiça dos Homens.

Perdro Valls Feu Rosa consegue conciliar, diariamente, três atividades: a de desembargador do Tribunal de Justiça, a de presidente do Tribunal Eleitoral e a leitura de 93 jornais de 51 países. Ainda na solenidade de posse, mês passado, como presidente do Tribunal Eleitoral, já foi anunciando uma caçada aos políticos corruptos, compradores de votos. Os meios jurídicos apostam que, com Feu Rosa na presidência no Tribunal Eleitoral, o Governo do Estado perde, inteiramente, a influência velada que exercia sobre o tribunal.
Nesta entrevista exclusiva ao correspondente do Pravda no Brasil, jornalista Antonio Carlos Lacerda, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa fala sobre corrupção eleitoral no Brasil e no mundo como um crime contra a humanidade; afirma ser um escândalo o fato de 13% do eleitorado brasileiro ter confessado que nas últimas eleições vendeu o voto; enfatiza a morte de 900 crianças por hora no mundo devido a falta de saneamento básico; diz que quem compra voto integra um sistema assassino, até genocida; se surpreende ao dizer que quando era adolescente, os políticos, após as eleições, procuravam os bancos para renegociarem a dívida de campanha, hoje, segundo o desembargador, não há dívida, o que há é “sobra de campanha”. O desembargador Pedro Valls Feu Rosa diz que não consegue entender por qual motivo uma pessoa que esteja respondendo a processos por crimes graves não possa ser, por exemplo, candidato a estagiário em um tribunal, mas pode ser candidato aos mais altos cargos de um país. “Eu considero isso uma clara afronta aos princípios da moralidade pública e da supremacia do interesse público”.
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista do desembargador do Poder Judiciário Brasileiro, Pedro Valls Feu Rosa:
Jornal Pravda - Rússia - Brasil:- É voz corrente que o tema corrupção eleitoral tem dois notórios personagens. O político que corrompe e o eleitor que se deixa corromper. Então, na opinião do Senhor, qual o grau e a classificação desse crime eleitoral, mais precisamente a compra do voto, pelo político, e a venda, pelo eleitor?
Desembargador Pedro Valls Feu Rosa: Eu considero a corrupção eleitoral um dos mais graves crimes praticados contra a humanidade. Isto porque, o dinheiro utilizado para comprar votos hoje, amanhã será recuperado através da corrupção e do favorecimento a interesses privados de grandes empresas, sempre em detrimento da população. É em grande parte graças a este mecanismo perverso de escolha dos governantes que 10% dos habitantes do planeta já deram propina a alguma autoridade, enquanto a cada cinco segundos morre uma criança de fome - eis aí uma relação de causa e efeito claríssima! O pior é que a população muitas vezes não percebe a extensão e gravidade deste problema. Assim, por exemplo, nas últimas eleições 13% dos eleitores brasileiros confessaram ter vendido o voto - alguma coisa em torno de 18 milhões de pessoas. Isto é um escândalo. A partir daí fica fácil compreender porque estima-se que 30% de tudo o que o Brasil produz é tragado pela corrupção. E este quadro é mundial. Li que na Rússia, por exemplo, os prejuízos decorrentes deste problema chegam a US$ 316 bilhões a cada ano. Na África, diversos estudos concluíram ser este o maior dos entraves ao desenvolvimento. Enquanto isso, pelo mundo afora, 900 crianças morrem por hora vítimas da falta de um simples saneamento básico. Assim, não é exagero dizer que quem compra votos integra um sistema assassino, e até genocida.

Pravda: Eliminar ou mesmo reduzir a corrupção eleitoral é um grande desafio. Qual a expectativa de Vossa Excelência como presidente de uma Corte Eleitoral?
Pedro Valls Feu Rosa: Conforme falei, o problema da corrupção eleitoral é mundial. Na Alemanha, há poucos anos, uma empresa de Kiel chamada Cashvote chegou a montar na Internet um serviço de intermediação de compra e venda de votos. Na Tailândia, políticos compram eleitores distribuindo comprimidos de Viagra. Na Rússia, houve denúncias de que eleitores venderam o voto em troca de garrafas de vodca e mochilas. Os efeitos culturais disso são muito ruins. Basta dizer que na cidade de Dingmei, na China, eleitores protestaram contra uma campanha limpa, na qual nada lhes foi oferecido. Uma eleitora chegou a declarar para um jornal local que durante as campanhas políticas sempre ganhava muitos presentes e até dinheiro dos candidatos, e que naquelas eleições não havia recebido nada, o que considerou péssimo. Tentando mudar esta cultura, o Butão chegou a proibir campanhas políticas para alguns cargos. Assim, eu não vejo como uma pessoa, ou mesmo uma instituição, por mais poderosa que seja ela, possa sequer arranhar este problema. A solução, se é que ela é possível, virá ao longo das gerações e de um lento, mas, persistente processo de conscientização. Se eu puder, em um pequeno momento desta longa caminhada, deixar uma pequena e quase insignificante contribuição, ficarei satisfeito. Afinal, como dizia Madre Teresa de Calcutá, para que a miséria acabe no mundo apenas duas coisas precisam melhorar: eu e você. Ou seja: façamos a nossa parte, não importa o quão pequena e insignificante seja ela.







Pravda: Uma crítica que se faz ao sistema legal é que muitas vezes ele trata os ricos com tolerância e os pobres com rigor. Qual a visão de Vossa Excelência sobre este aspecto? Isto vale para a justiça eleitoral?
Pedro Valls Feu Rosa: Giuseppe Bettiol, um grande penalista e político italiano, costumava dizer que “direito é a expressão da vontade dos mais fortes”. Esta idéia pode ser complementada pela famosa frase do alemão Otto von Bismarck: “ah, se as pessoas soubessem como são feitas as leis e as salsichas”. Esta é uma realidade. Nossas leis muitas vezes forçam o sistema judicial a desempenhar um triste papel, o de ser leão diante dos carneiros e carneiro diante dos leões. Eis aí outro problema de amplitude mundial. Isto vale tanto para crimes comuns como para o processo eleitoral. Eu defendo que já passou da hora do Judiciário reagir a isso, interpretando as leis no limite possível do rigor. Temos muitas leis que mascaram, sob o rótulo inocente de “ampla defesa” ou “garantias constitucionais”, favores descarados a algumas pessoas ou grupos. Eu entendo que sobrepõem-se a esses expedientes princípios quase que universais, como o da “moralidade pública” e até mesmo o do “interesse público”. Não é o caso, evidentemente, de o Poder Judiciário se sobrepor ao Poder Legislativo - mas também não pode ficar ele restringido no desempenho de suas funções por conta de leis claramente inconstitucionais, elaboradas para atender interesses outros que não aqueles da população.







Pravda:- Já está arraigado nas camadas sociais periféricas, de baixa ou nenhuma renda, principalmente, a cultura de negociar do voto. Quais os mecanismos que o Senhor dispõe e vai utilizar para conscientizar o eleitor em não negociar o voto?
Pedro Valls Feu Rosa: Eu sou filho, neto e sobrinho de ex-políticos. Durante praticamente três décadas de minha vida acompanhei, e muito de perto, a realidade da vida política. Por conta disso me escandalizo com o quadro atual. Durante minha infância, sempre que acabava uma eleição eu via os candidatos indo aos bancos renegociar dívidas de campanha. Hoje já não há mais dívidas de campanha – há “sobras de campanha”. Isto está errado. Eis aí um indicativo forte de que nossas instituições estão falhando. E não se coloque a culpa no mais fraco – o eleitor pobre e pouco esclarecido. No mais das vezes são pessoas abandonadas pelo Estado, sem perspectivas de vida, que acabam se vendendo em troca de qualquer coisa que alivie um pouco a dor de uma miséria brutal. Não será por este caminho que resolveremos o problema da corrupção eleitoral. O erro está no comprador de votos e em quem o financia. É nesta ponta que temos que agir. Qualquer tentatiza de conscientização dos eleitores fracassará se não houver uma repressão dura e firme aos candidatos que compram votos e aos que os financiam. Em meu estado estamos planejando uma campanha de conscientização, mas ao mesmo tempo estamos criando mecanismos para aumentar ao máximo a eficiência do aparelho de fiscalização e combate à corrupção eleitoral.
Pravda:- Os cerca de 56 milhões de brasileiros que acessam diariamente a Internet terão nas eleições deste ano mais um ingrediente em suas telas de computadores: a campanha, sem restrições, de candidatos. Essas vão ser as primeiras eleições no Brasil com o uso da internet pelos candidatos, que terão o número crescente de internautas um bom fôlego nas suas campanhas. Qual a visão e opinião de Vossa Excelência sobre essa novidade e quais mecanismos tem em mãos para coibir os crimes eleitorais que certamente vão ocorrer, ou já estão ocorrendo, no universo virtual?







Pedro Valls Feu Rosa: Quando o mundo das leis ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o mundo das leis. Costumo sempre repetir esta frase, que se encaixa como luva ao momento atual. Nossas leis têm ignorado que o mundo mudou. Os conceitos clássicos de jurisdição, processo, prova e tantos outros já são incompatíveis com o mundo moderno. Darei um pequeno exemplo: no Brasil, o número de assaltos a banco pela Internet já é maior do que aqueles tradicionais, praticados com violência física. E o que pode fazer nosso sistema legal a respeito? Quase nada. Na maioria das vezes nossos conceitos clássicos de jurisdição impedem uma eficaz investigação do caso e a responsabilização do culpado – isto sem falar na necessidade de obtenção de prova física em um mundo virtual. No Brasil, o número de internautas cresce constantemente e deve ser maior ainda neste ano de 2010. Em 2009, por exemplo, houve um aumento de 75% em relação a 2005. Esta decisiva fatia do eleitorado brasileiro estará sob a alça de mira dos candidatos e suas práticas eleitorais, nem sempre éticas e leais. Confesso que causa-me preocupação lidar com esta realidade utilizando um sistema legal que não consegue disciplinar a contento nem o mundo real, que dirá o virtual.
Pravda:- Quando das campanhas eleitorais, temos assistido pronunciamento de candidatos a cargos eletivos que não possuem, sequer, as mínimas qualificações morais, éticas e técnicas para receberem a investidura de uma função pública, quer seja ela no Poder Executivo ou Legislativo. Verdadeiros cânceres sociais, bandidos que criminosamente se utilizam do sonho e da esperança popular por um novo tempo, uma nova era de prosperidade e paz social, invadem os lares e cinicamente falam às famílias, sofismando com temas sagrados, a exemplo do trabalho, educação, segurança pública, moralidade, ética, lisura, transparência, honestidade, competência, justiça e paz social, além de outros de irresistível poder de sedução e conquista. Esses são os famosos “Fichas Sujas” que, através de dispositivos legais, conseguem o registro de suas candidaturas a cargos eletivos, muito embora, se fosse por força da verdade dos fatos, não a dos autos processuais aos quais responde, o local onde deveriam estar é atrás das grades de uma prisão, jamais na TV falando ao povo. Qual a opinião de Vossa Excelência a esse respeito, quais dispositivos podem impedir o registro dessas candidaturas e o que será feito no âmbito da Justiça Eleitoral para que o povo saiba a verdade sobre esses candidatos?
Pedro Valls Feu Rosa: Considero este um dos aspectos mais tristes da nossa democracia. Eu não consigo entender por qual motivo uma pessoa que esteja respondendo a processos por crimes graves não possa ser, por exemplo, sequer candidato a estagiário em um tribunal, mas pode ser candidato aos mais altos cargos de um país. Eu considero isso uma clara afronta aos princípios da moralidade pública e da supremacia do interesse público. Não se deve ignorar, claro, existir a possibilidade de processos movidos por vingança ou interesses políticos. Há que se ter sensatez. Mas o que temos visto é vergonhoso para as instituições. Já cheguei a ver o caso de um candidato, eleito, que responde a 34 processos. Pelas nossas leis, ele não pode prestar concurso público nem para o mais humilde dos cargos, mas pode ser candidato e administrar vultosas verbas públicas. Isto tem que mudar. Neste sentido aplaudo, principalmente como cidadão, a luta do Ministro Carlos Ayres Britto, do Tribunal Superior Eleitoral, buscando a criação de mecanismos que expulsem da vida pública este tipo de gente. E vejo, com alegria, que o Brasil não está sozinho nesta cruzada. Há poucos meses acompanhei um grande debate sobre este tema acontecido na África do Sul, e me chamou a atenção uma frase que li em um jornal de lá: “Apenas cidadãos exemplares deveriam ser eleitos líderes”. Na Índia, há poucas semanas, anunciou-se um início de consenso para a elaboração de uma lei que retire da vida pública aquelas pessoas envolvidas com a justiça criminal. Isto é animador. Pessoalmente, defendo que após condenada por um juiz uma pessoa não possa ser candidata a cargos eletivos, ainda que tenha recorrido da sentença. Isto tudo, porém, não me impede de finalizar com uma reflexão: é muito triste a humanidade precisar de leis para tirar este tipo de gente da vida pública...
ANTONIO CARLOS LACERDA

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O CAIXA-UM É O GRANDE PROBLEMA DO BRASIL

Márlon Reis, juiz
Publica no jornal A Tarde, da Bahia em 21/12/2009.

A corrupção eleitoral no Brasil é um tema que instiga o juiz de direito Marlon Reis, do Maranhão.

Além de presidir a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe) e ser um membro do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), Reis está defendendo, na Universidade de Zaragoza, na Espanha, uma tese de doutorado sobre o assunto.

O jovem juiz completou 40 anos na última quinta-feira 10, mesmo dia em que concedeu esta entrevista, em Brasília, num intervalo do seminário nacional Superando a Cultura da Corrupção, promovido pela Associação Brasileira contra a Corrupção e Impunidade (Abracci) para marcar a passagem do Dia Mundial de Combate à Corrupção.

O evento veiculou a versão em português do Relatório Global de Corrupção 2009, lançado mundialmente pela Transparência Internacional na quarta-feira, com dados alarmantes: nos países em desenvolvimento e em transição, políticos e funcionários do governo recebem propinas estimadas entre US$ 20 bilhões e US$ 40 bilhões por ano. Na entrevista concedida a A TARDE, Reis defende, para mudar essa lógica, uma reforma completa no sistema eleitoral brasileiro. Confira trechos da conversa.

O escândalo envolvendo o governadordo DistritoFederal (DF) José Roberto Arruda emdistribuição de propinas e demensalões fazcom queo momento seja mais que propício para se debater o tema da corrupção. O que o senhor acha que pode advir de positivo disso tudo?

Não tenho dúvida de que esse novo escândalo traz um elemento bastante positivo para pôr fim de vez a qualquer dúvida sobre a inviabilidade do atual sistema eleitoral. Nós vemos aí todos os principais partidos do País envolvidos, de uma maneira ou de outra, com as mesmas práticas. É curioso que isso esteja acontecendo, e só pode ser explicado pelo fato de estarmos num sistema eleitoral que alimenta práticas como essa. O ponto positivo desse episódioé fechar o círculo dos grandes partidos, demonstrando que todos eles estão de alguma forma relacionados ao mesmo tipo de prática.

O senhor não acha que esse caso,como tantosoutros,vai acabarem pizza–ou, comojá andam dizendo, em panetone?

A solução dessas questões concretas vai depender de muitos aspectos. Não cabe apenas o julgamento político.
Em tese, é possívelque o próprio Judiciário discuta isso também, através de ações previstas em lei que podem também redundar emdecisões mais drásticas contra esses personagens.
Mas o que me parece também é que se demonstra a necessidade de mobilização e de articulação da sociedade, que não deve aguardar a ação das instituições de forma inerte. A sociedade pode e deve participar pressionando os parlamentares e as instituições, fazendo isso de forma cívica e democrática.

Quais são as características do sistema eleitoral brasileiro que, na sua opinião, levam ao problema da corrupção?

São dois problemas principais.
Um é a mercantilização das eleições, e o outro é a personalização das eleições, a individualização do processo eleitoral. Essa primeira questão, a da mercantilização das eleições, passa pela lei: a nossa legislação eleitoral sequer prevê limites de gastos para as eleições. Cada eleição se torna mais cara, é preciso movimentar cada vez mais recursos, e aqueles que não os têm vão ficando longe da possibilidade de conseguir se eleger. Por outro lado, aqueles que mobilizam recursos, seja por vias lícitas ou ilícitas, vão se tornando cada vez mais fortes eleitoralmente.
Então é um processo que está se agravando.
O outro problema é o da individualização. A política no Brasil é fulanizada. Os candidatos são vistos como salvadores da pátria, como pessoas que vão resolver todos os problemas, e há pouca cultura de partidos políticos, de grupos sociais organizados. É característica das democracias mais avançadas o desenvolvimento e o fortalecimento dospartidos políticos.Hoje vemos os candidatos disputando entre si. E, veja, é tão grave isso. Por que não podemos ter um partido político forte no Brasil? Porque na disputa eleitoral os candidatos têm que vencer os próprios colegas de partido ou coligação. Isso faz com que, em lugar de aliados, os partidos reúnam adversários dentro deles. Eles disputam entre si, e às vezes é mais importante ter mais votos que o companheiro de partido do queter maisvotosque oadversário.

Quem são hoje os grandes provedores financeiros dos mandatos políticos no País?

As campanhas políticas são bancadas por aqueles que vão auferir lucros com os governos. São as grandes empreiteiras, as empresas de marketing e publicidade, empresas que esperam lucrar ao longo do mandato seguinte, e esse é o motivo pelo qual elas doam lícita ou ilicitamente. O sistema eleitoral está ancorado nisso, em candidaturas de indivíduos bancadas por poucos e poderosos grupos econômicos que fomentama eleição desses indivíduos para ter acesso a contratos privilegiados.
O senhor saberia dizer em qual percentual a pessoa jurídica, em relação à pessoa física, contribui financeiramente para as eleições no Brasil? Praticamente não há doações de pessoas físicas no Brasil, só de pessoas jurídicas.
Numericamente, as doações individuais são insignificantes, ao contrário do que acontece em outros países, onde os eleitores se predispõem a ajudar, ainda que em pequenas quantias, as candidaturas daqueles que entendem estar melhor preparados para administrar.
Aqui é o inverso.
O eleitor não só não doa como também espera que o político dê a ele algo em troca do seu apoio. É preciso inverter essa lógica, que é terrível, porque se permite que se possa comprar votos, distribuir benesses,em troca de um mandato de quatro anos que desperdiça quantias vultosas à custa do erário.

Isso acontece em todas as esferas da administração pública – municipal, estadual e federal?

Essa é a característica principal da política brasileira hoje.Isso sequer varia muito por região do País. É um equívoco achar que esse tipo de prática esteja concentrado em bolsões de pobreza, ou em áreas regionalmente mais isoladas.Negativo.
Isso faz parte da cultura política do Brasil, e ela é portanto a grande vilã da destruição ética dos pilares da democracia e da República.
Vemos esses fatos se repetirem independente do partido político, e atingirem transversalmente a todas as regiões do País e a todos os partidos políticos, salvo raras exceções.

O senhor pode citar casos em que doações de campanha se reverteram em vantagens junto ao poder público? Recentemente se descobriu uma conexão clara no município de São Paulo, onde um quarto da Câmara de Vereadores recebeu determinação de cassação por conta de doações ilegais praticadas por um grupo envolvido com o setor imobiliário. E quando se foi verificar os projetos de lei apresentados por esses vereadores beneficiados por aquele grupo imobiliário, viu-se que grande parte dos projetos estava relacionada a aspectos urbanísticos da cidade, os quais geravam profundas modificações com benefício para o mercado imobiliário.
Aquele que doa, lícita ou ilicitamente, o faz porque deseja um retorno. Nós precisamos de uma reforma na lei eleitoral de modo que haja um sistema de financiamento de campanha que não oficialize a compra de mandatos.

E quanto ao caixa dois, como coibi-lo?

O caixa-dois é um problema gravíssimo, mas nós temos outro mais grave, que é o caixa-um. O que se admite hoje no Brasil é intolerável: que um pequeno número de empresas gigantescas banque grande parte dos eleitos, e com isso domine o Parlamento. Isso não é democracia. O caixa um é o grande problema do Brasil. O caixa-dois é outro problema grave, e nós precisamos mudar o sistema como um todo. É impossível encontrar maneiras de fiscalização que fechem completamente o cerco, mas a primeira coisa a fazer é mudar o sistema eleitoral de modo que tenhamos um modelo de financiamento de campanhas quenão seja baseado nas doações dos grandes detentores do poder econômico.

Nesse sistema que o senhor defende,oque teria de ser reformulado?

Logo de saída, duas medidas teriam de ser adotadas. Uma delas é o fortalecimento dos partidos com o fim do voto individual. É preciso que as pessoas votem no partido político, e não em um indivíduo, que normalmente é o cacique, é o coronel da sua comunidade, o chefe local que está ligado aos presidentes de associações, aos prefeitos, aos vereadores, e que vai reproduzindo as estratégias clientelistas locais – e isso no Brasil inteiro. Então é preciso priorizar os partidos políticos e fortalecê-los, dirigindo a eles o voto, e não ao fulano. Quanto às doações, nós só temos duas alternativas. Ou instituímos o financiamento público de campanha ou o financiamento social, estabelecendo as doações apenas por indivíduos e num montante pequeno, de tal maneira que as pessoas sejam estimuladasa doar e os candidatos sejam estimulados a procurar doadores.

Seria como o modelo dos Estados Unidos...

Parecido, mas numa versão brasileira, fruto de um engajamento cada vez mais presente de segmentos da sociedade civil organizada.
É preciso priorizar aqueles que são capazes de mobilizar a sociedade. O candidato que não é capaz de motivar alguém a fazer uma doação, ainda que pequena, está no lugar errado.
Os políticos que protagonizam a corrupção eleitoral têm sofrido punição pela Justiça? Sim, hoje podemos dizer que, graças à sociedade civil foi construída a lei 9.840, que é a lei contra a corrupção eleitoral e permite a cassação por compra de votos e por uso eleitoral da máquina administrativa.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Nas eleições, fontes ilícitas capturam o Estado, opina juiz

Quinta, 7 de janeiro de 2010, 13h50

Eliano Jorge


"Não é à toa que praticamente todos os grandes partidos tenham sido pilhados em flagrante, nos últimos anos, negociando apoios políticos em troca de verbas e cargos públicos. É uma prática generalizada", lamenta o presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe) e membro do comitê nacional do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o juiz Márlon Jacinto Reis, do Maranhão.

Entrevistado por Terra Magazine, ele critica o sistema eleitoral brasileiro e propõe mudanças drásticas para banir a "mercantilização" e o "personalismo" que, acredita, degradam a política brasileira, de Norte a Sul. Resumindo, "interesses particulares sobre os interesses públicos".

Aos 40 anos, Reis não foge de análises diretas e pesadas. "Quem faz doações vultosas realmente o faz com o único propósito de influenciar as decisões futuras do governo", torna mais do que claro.

Ele maldiz principalmente o suporte a candidaturas: "As campanhas são financiadas com verbas públicas desviadas pra este fim eleitoral, de manter no poder quem está lá. O restante vem de grandes grupos interessados em contratar com o governo". E conclui: "O Estado deixa de ser Estado, é capturado por fontes ilícitas e deixa de servir ao coletivo".

Explica-se a vantagem do jogo de bancar campanhas de parlamentares: "Sai barato gastar alguns milhões na eleição de alguém que pode ter uma influência imensa na definição do orçamento, principalmente quando isso acontece em grupo".

O magistrado acredita que a dependência excessiva da economia nacional em prestar serviço ao Estado impede o desenvolvimento efetivo do País. E atribui ao Poder Judiciário uma grande parcela de responsabilidade dos problemas brasileiros. Por isso, apoia "uma reforma judiciária baseada não exclusivamente em aspectos técnicos, mas também em aspectos valorativos, de tal maneira que possa colaborar, de maneira mais eficiente, para o aprimoramento da sociedade".

Leia a entrevista.

Terra Magazine - Como o senhor avalia o sistema eleitoral brasileiro?
Márlon Reis - O sistema eleitoral brasileiro é fruto de uma tradição de concepção privatista do Estado. A figura do indivíduo prevalece sobre a coletividade, e os interesses particulares sobre os interesses públicos. Isso é demonstrado em vários aspectos da legislação. As pessoas têm a falsa impressão de que estão votando em indivíduos. Na verdade, uma série de cálculos, que formam o que se chama de quociente partidário, altera o resultado, faz com que não seja o simples somatório de votos que o faça ser eleito. A impressão dos eleitores de votar em indivíduos alimenta as relações clintelistas locais, fazendo chefes regionais terem a preponderância nos processos eleitorais. Ao invés de ideologias e bandeiras, prevalece a tensionalidade de caciques políticos locais.
O partido sabe que, por causa do quociente, é preciso fazer alianças com outros partidos pra ter o volume de votos necessários. Nessas alianças, os partidos se preocupam com a viabilidade eleitoral, e não com o conteúdo da eleição. O eleitor também não se preocupa com o conteúdo da candidatura, e sim com a personalidade do candidato. Quando bem intencionado, o eleitor procura um líder transformador. O mau intencionado negocia com o candidato, vendendo seu voto... Então, as relações são individualizadas e mercantilizadas. Os partidos negociam em termos financeiros a adesão de aliados partidários. E os candidatos também negociam com o eleitorado em troca de favores a concessão de votos. O sistema eleitoral favorece isso, ao vender a ilusão do voto no indivíduo e forçar coligações de partidos, independenemente de sua ideologia, sem critétrio, apenas por pragmatismo.

Como se deve combater a impunidade?
Quando se institui uma política baseada nisso, em personalismo e mercantilização, estamos falando da forma de acesso das pessoas ao poder. E são justamente estas pessoas que estão encarregadas de criar as normas para barrar processos de corrupção. O Brasil é carente de normas, de uma institucionalidade que, de fato, enfrente a corrupção. É razoável que seja assim, pois o próprio sistema eleitoral já favorece a eleição de pessoas que precisarão ter, inclusive durante o processo eleitoral, manejado recursos de forma ilícita. Não é à toa que praticamente todos os grandes partidos tenham sido pilhados em flagrante, nos últimos anos, negociando apoios políticos em troca de verbas e cargos públicos. Este episódio também acontece em quase todos os demais partidos. É uma prática generalizada. Durante o processo eleitoral, as alianças são negociadas com base em trocas, que são sempre financeiras, que se baseiam na concessão de oportunidades de recursos - muitas vezes públicos -, e cargos, que também têm a finalidade de movimentar recursos públicos para fins políticos. Ao partilhar cargos entre aliados, os governantes distribuem, na sua base, as portas de acesso a altos volumes de dinheiro público que vão nutrir aquela aliança, que é o que justifica a permanência nos governos. Isso acontece em todos os âmbitos da vida pública. Com uma política baseada nestas regras, fica difícil imaginar que estas mesmas pessoas, exercendo o poder, vão gerar a institucionalidade necessária para combater aquilo de que eles próprios vão precisar para garantir sua permanente eleição.

Como a sociedade civil pode participar de maneira efetiva das reações à corrupção?
Está surgindo, no Brasil, uma militância desatrelada dos partidos, mas preocupada com a política. Um exemplo disso são os 300 comitês populares do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, com um número que continua crescendo. Eram 70, há dois anos. Não pra defender partidos, mas para defender o aperfeiçoamento do sistema eleitoral como um todo. Este ano, deve haver uma forte militância por votos em candidatos de ficha limpa, independentemente da aprovação daquele projeto de lei. A Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas, a OAB e várias outras organizações estão envolvidas nesta campanha. Falarão que a política é importante. As pessoas geralmente se desencantam e consideram a política um terreno sujo, em que não pode haver a aproximação de pessoas de bem. Esse movimento social diz o contrário, que momentaneamente a política está tomada por pessoas que não deveriam estar lá.

Quem financia as campanhas e com que propósito?
As campanhas são financiadas com verbas públicas desviadas pra este fim eleitoral, de manter no poder quem está lá - é uma parte considerável. O restante vem de grandes grupos interessados em contratar com o governo. É assim no Brasil. O resto é insignificante. Aí perdemos qualquer possibilidade de planejamento. O Estado deixa de ser Estado. Nos EUA, se usa a expressão "captura de governo". Ele é capturado por fontes ilícitas e deixa de servir ao coletivo.

Até quanto se investe financeiramente por um mandato?
Eu não saberia fazer menção a números. Mas há vários exemplos conhecidos de candidaturas multimilionárias. Inclusive pra mandatos que nem mesmo fazem gerenciamento de recursos. Um deputado federal não gerencia verbas diretamente, ele influi no orçamento. Ao mesmo tempo, vários deles têm candidaturas multimilionáras porque obviamente se trata de ocupar o parlamento com o maior número de pessoas que garantirá uma destinação das verbas orçamentárias para essas empresas que financiam a campanha. Sendo assim, sai barato gastar alguns milhões na eleição de alguém que pode ter uma influência imensa na definição do orçamento, principalmente quando isso acontece em grupo. Vimos recentemente uma empresa que teve seu nome divulgado como a maior financiadora de campanha, é uma empreiteira, financia candidatos no Brasil inteiro.

O senhor fala da Camargo Corrêa?
Exatamente. Ela traz à tona algo que é generalizado, não é só ela que pratica. Todas as demais empreiteiras e todo mundo que contrata com o poder público financia muito as campanhas. Esta é a primeira chave de uma reforma política, que é impedir pessoas jurídicas de doarem. Na verdade, as empresas optam pelo caixa 2 porque não querem doar ostensivamente. Mas hoje a legislação não estabelece limites para as doações. Outro motivo para o caixa 2 é não querer doar diretamente. Porque, por exemplo, uma empresa que contrata com o poder público é proibida de doar, mas é comum que ela atue por via de outra empresa com a qual mantenha relação. É simples fazer uma transferência de recursos para um doador legal.
É curioso que tenhamos tanto caixa 2 no Brasil, quando a legislação, de regra, é tão leniente. Temos oficializada a doação por pessoas jurídicas e aceitamos o risco do controle de grande parte dos governos e do poder legislativo por estes mesmo interesses.

Como se evita isto?
O primeiro ponto de partida seria quebrar a incidência das grandes empresas que têm interesse em atuar com o poder público. Outro aspecto de uma reforma política seria quebrar este mito da individualização do voto. Os brasileiros rejeitam a ideia da lista fechada, pensando que ela oficializa o caciquismo. É o contrário. O sistema atual incentiva o voto nos caciques locais e forma um sistema de caciquismo que se reproduz em todos os âmbitos do governo. Com listas partidárias fechadas, a própria forma de composição das listas já seria objeto de discussão eleitoral. Um partido que democraticamente formasse sua lista de uma maneira mais transparente, envolvendo a comunidade neste processo, partiria com muito mais simpatia pra conquista do voto do eleitorado do que um partido em que o cacique ditou quem deve compor a lista. Mas a lista fechada é encabeçada pelos candidatos com maior potencial eleitoral; se esta lista for formada por caciques à revelia dos membros do aprtido, quem vai participar daquela campanha? Só os poucos diretamente beneficados. Com processo interno de discussão, processo justo de escolha e confiança dos seus membros, todos marcharão juntos para obter voto.

Há exemplos disso?
Na Espanha, com a morte do general Franco, se fez um processo claro pela sua redemocratização, e uma das primeiras providências adotadas foi a de listas partidárias fechadas para impedir o caciquismo. Isso funcionou muito bem. Os partidos políticos espanhóis são fortes, ideologicamente consistentes, bem distintos uns dos outros. Se quisermos ter partidos políticos fortes e uma política menos fulanizada, precisamos, sim, aceitar o desafio das listas partidárias fechadas, as pessoas votarem em partidos políticos, e não em indivíduos.

A mercantilização e a personalização, citadas pelo senhor, são componentes de uma prática difundida nacionalmente, não? Não se restringem a regiões mais carentes...
É uma prática nacional. E é uma prova de que é o sistema eleitoral que faz isso. Não é pelas características de uma região, são as decorrências lógicas da adoção de um modelo que está instituído na nossa legislação. Se a questão da compra de votos fosse relacionada à educação e à falta de recursos, teríamos isso concentrado em bolsões de pobreza, em algumas regiões do Nordeste e do Norte. Mas é uma prática absolutamente generalizada em todos o lugares. Temos casos na Serra Gaúcha e em Ribeirão Preto, lugares de altíssima renda per capta e em que o índice de desenvolvimento humano (IDH) é mais alto. A questão não é meramente econômica, é sistêmica e cultural. O sistema eleitoral atual fomenta uma cultural patrimonialista que faz se praticar generalizadamente, do Rio Grande do Sul ao Amapá, a mercantilização da política.

O senhor defende as doações por pessoas físicas. Mas, num país historicamente com dificuldades econômicas, seria viável o eleitor bancar campanhas?
Com certeza, é viável, sim. Na verdade, estamos longe de ter um país pobre. É um país empobrecido, em parte. A classe média e outros setores mais organizados economicamente poderiam perfeitamente (bancar candidaturas). Não participam hoje porque não acreditam no sistema. A doação por pessoas físicas é uma raridade. Porque o sistema não é crível, e as pessoas acreditam que o dinheiro será desviado já na campanha. Se fosse mudado o sistema, para permitir a conquista da confiança do eleitorado, não tenho dúvida de que as pessoas estariam dispostas para entrar na internet e fazer uma pequena doação para aquele partido em que mais acredita. Não precisa ser em grandes somas. Quem disse que precisamos de campanhas multimilionárias? A legislação já prevê os programas em rádio e televisão.
Nos casos dos candidatos a cargos majoritários, especialmente em eleições municipais, eles só podem utilizar segundos para aparecer com seu rosto e dizer que são candidatos. Se tivéssemos listas fechadas, o tempo seria gasto para explicar por que um partido é diferente do outro, por que votar neste e não naquele, não haveria aquela infinidade de candidaturas individuais. Só isso já favoreceria um espaço de proporção partidária e eleitoral muito grande, com tempo na televisão. Numa campanha coletiva e não difusa, todos os recursos seriam canalizados pra uma campanha unica, barateando imensamente os custos. Seria um grupo contra um outro grupo, e não centenas de candidatos, cada um sendo uma unidade econômica de campanha.

Nesta semana, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, reclamou que são tratados como crime ou conluio as doações legais para candidatos.
Não há criminalização nenhuma hoje, este é que é o problema. Não há mínima restrição, num patamar efetivamente relevante, a empresas que fazem estas doações, mesmo elas sendo contratantes do poder público. Isto, sim, deveria gerar muito mais repressão do que tem hoje. Discordo completamente. Acho que, pelo contrário, esta criminalização que ele vê não existe, infelizmente. Deveria haver uma efetiva fiscalização pra impedir. Porque estamos diante de coisas graves. Quem faz estas doações vultosas realmente o faz com o único propósito de influenciar as decisões futuras do governo. Não é legal. Na parte que é legal, defendo que seja mudado o sistema eleitoral pra que não seja. O problema é que, muitas vezes, as empresas usam brechas da legalidade para fazer coisas ilegais.

Mudanças na legislação, em 2009, facilitam as chamadas doações ocultas, que são direcionadas aos partidos. Elas não vinculam diretamente financiadores a candidatos dos partidos agraciados.
É um exemplo disso que falei. Os partidos políticos já saberão para quem vão transferir o dinheiro. Certamente não haverá uma democracia partidária que faça esse dinheiro ser pulverizado entre outros candidatos.

O senhor acha que isso reduz a transparência de doações direcionadas?
Exatamente. O que temos é uma excessiva leniência com essas práticas, e agora agravada pela própria legislação, que tornou ainda mais permitida.

A dependência excessiva da economia nacional em relação ao Estado - em prestar serviços a ele - motiva empresas a priorizarem negócios com o poder público e, a partir daí, isso as aproxima da corrupção?
Com certeza. E, por outro lado, isso atrapalha o desenvolvimento do País porque faz os olhos do empresariado se voltarem muito para contratação com o Estado. Isso impede o desenvolvimento efetivo da economia brasileira para outros patamares. É lógico que é preciso alcançar maior grau de liberdade nos negócios. E, quando se fica com um volume de dependência incrível em relação às coisas do Estado, isso tem como consequência a limitação do desenvolvimento do País.

O sistema de votação eletrônica do Brasil é o melhor do mundo, o mais prático, o que melhor funciona?
Estou convencido de que funciona bem. Tenho esta experiência como juiz eleitoral, presidindo eleições, vendo o funcionamento do sistema, acompanhando todo o processo. Trata-se de um mecanismo extremamente sério e eficaz, rápido. Ele trouxe um benefício à sociedade que não foi visto inicialmente. Tudo isso que se fala, sobre compra de votos, sobre abuso de poder econômico, em grande parte se deve ao fato de termos feito a informatização do voto. Até então, o assunto nas eleições era fraude, só falávamos de gente que teve voto e não apareceu na votação. Por isso tinha pouco espaço esta discussão de como o voto foi obtido, se com abuso ou ameaça. Chegamos a este nível de discussão porque pudemos parar de falar em fraude eleitoral.

O ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que uma das causas do aumento da corrupção é a atuação do Poder Judiciário, com "práticas arcaicas", "interpretações lenientes" e "falta de transparência" no processo decisório. O que o senhor acha disto?
Eu concordo com todas as declarações. Eu li e acho que ele está certo. Foi duro o que ele disse, mas era necessário que fosse dito em algum momento. Nós precisamos, de fato, fazer uma reforma do Judiciário que seja baseada não exclusivamente em aspectos técnicos, mas também em aspectos valorativos, de tal maneira que o Poder Judiciário possa colaborar também, de maneira mais eficiente, para o aprimoramento da sociedade, que tanto se almeja. O Judiciário tem, sim, uma parte de responsabilidade grande neste quadro atual, nestes fatos que tumultuam a vida brasileira.

A Transparência Internacional calcula que, nos países em desenvolvimento, propinas pagas a políticos e funcionários do governo somam até US$ 40 bilhões por ano. Que ações poderiam ser tomadas para reduzir isto no Brasil?
Tudo o que falamos tem a ver com isso porque estamos tratando de pensar e propor a criação de um estado mais público, mais coletivo, mais abstrato. Neste sentido, a construção de mecanismos de transparência é absolutamente fundamental. Inclusive para as pessoas saberem quais são as regras do relacionamento com o poder público, nas disputas em licitações e uma série de outras formas de relação. Deveria ser cada vez mais transparente.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ano Novo, Ficha Limpa

Márlon Jacinto Reis

O Congresso Nacional perdeu em 2009 a chance de dar alguma resposta aos intensos reclamos da sociedade brasileira pelo aprimoramento ético das nossas instituições políticas.
Faltou, mais uma vez, cuidar da necessária reforma do sistema eleitoral, ainda marcado por regras que favorecem o clientelismo e o culto à personalidade e que consagram um financiamento de campanha pleno de distorções e obscuridades.
Perdeu-se a oportunidade de deter algumas mazelas já conhecidas de todos ao aprovar-se Uma reforma na legislação eleitoral que oficializou a doação indireta por intermédio dos partidos, permitiu a outorga de quitação eleitoral a candidatos que tiveram contas rejeitadas, estipulou prazo irrisório para a apuração das irregularidades nas contas de campanha e proibiu a fiscalização da propaganda partidária pelo Ministério Público (Lei nº 12.034/2009), num rosário sem precedentes de inconstitucionalidades.
Com tudo isso, não é de se admirar que o ano tenha terminado em meio a mais um escândalo envolvendo – como sempre – o estabelecimento ou fortalecimento de vínculos políticos por meio de recursos desviados do Erário.
Espera-se que no início de 2010 a Câmara dos Deputados finalmente comece a apresentar respostas à sociedade. Terá oportunidade de fazê-lo votando o projeto de lei complementar conhecido como “Projeto Ficha Limpa” (PLP 518/2009), oriundo da atuação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que coletou 1,5 milhões de assinaturas para a sua iniciativa popular.
Trata-se de uma campanha cívica que conquistou o apoio da sociedade ao pugnar pelo estabelecimento de critérios para candidaturas baseados nos dados objetivos que marcam a vida pregressa dos candidatos. Um milhão e meio de assinaturas atestam a forte base popular da proposta.
A iniciativa tem por base o próprio texto da Constituição Federal, que em seu art. 14, § 9º, consagra o princípio da precaução, autorizando o legislador complementar a fixar novas hipóteses de inelegibilidade que levem em conta o passado dos candidatos como forma de proteger a moralidade e a probidade administrativas.
Juristas de renome como Celso Antônio Bandeira de Mello, Aristides Junqueira, Fábio Konder Comparato e João Baptista Herkenhoff figuram entre os que têm o projeto como plenamente compatível com a ordem constitucional, já que não prevê a aplicação antecipada de penas, senão a definição de novos critérios jurídicos para a limitação de candidaturas.
Uma das medidas previstas afasta dos pleitos candidatos que renunciaram a seus mandatos para escapar de punições no âmbito parlamentar. Se norma semelhante estivesse em vigor, muitos dos atuais dissabores que experimentamos teriam sido prevenidos, nos exatos termos do que pretende a nossa Constituição.
O Parlamento tem o dever de dar, já no início de 2010, pronta resposta a essa demanda social, discutindo e deliberando sobre o Projeto Ficha Limpa sob pena de a omissão dos congressistas e das maiorias parlamentares ver-se convertida – ela própria – em importante tema de debate ao longo das eleições que se avizinham.